A Cara que Mereces, 2004
Miguel Gomes
Formato: AVI Aúdio: Português (Portugal)
Legenda: Português
Duração: 103 minutos
Tamanho: 970 Mb
Servidor: Zippyshare
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SINOPSE
Francisco, comporta-te! Bem sei que hoje fazes 30 anos, que é carnaval e que vestes de cowboy na festa do colégio, cercado por miúdos que detestas. Controla-te, rapaz! Não vês que assim já não te aturam? E depois, como é que é? Partes a cabeça, vais para o hospital, ficas com sarampo e já não tens ninguém para tratar de ti... Como à Branca de Neve, davam-te jeito sete anões... Francisco, repete comigo: "Até aos trinta anos tens a cara que Deus te deu, depois tens a cara que mereces"
Francisco, comporta-te! Bem sei que hoje fazes 30 anos, que é carnaval e que vestes de cowboy na festa do colégio, cercado por miúdos que detestas. Controla-te, rapaz! Não vês que assim já não te aturam? E depois, como é que é? Partes a cabeça, vais para o hospital, ficas com sarampo e já não tens ninguém para tratar de ti... Como à Branca de Neve, davam-te jeito sete anões... Francisco, repete comigo: "Até aos trinta anos tens a cara que Deus te deu, depois tens a cara que mereces"
Fonte: Ípsilon
ANÁLISE
por Luís Miguel Oliveira
Não é muito seguro que aquilo que mais se
repete acerca de "A Cara que Mereces", inclusive pelo realizador, seja o
que há de mais significativo nele. Uma crise existencial de um homem
que faz trinta anos: parece uma sinopse de um drama psicológico, tudo o
que o filme não é (nem "drama" nem "psicológico").
Vejamos isso como um "gag", porta de entrada, "gancho", de uso só justificável perante a dificuldade em lidar (ou em definir com rigor) com o que acontece em "A Cara que Mereces", filme que se instala num desnível entre a "efabulação" e o "efabulado". Não é metafórico, não é literal: está algures entre os dois, numa terra de ninguém que o filme procura, encontra, e alimenta até ao fim (até, de facto, não sobrar ninguém na terra).
Vejamos isso como um "gag", porta de entrada, "gancho", de uso só justificável perante a dificuldade em lidar (ou em definir com rigor) com o que acontece em "A Cara que Mereces", filme que se instala num desnível entre a "efabulação" e o "efabulado". Não é metafórico, não é literal: está algures entre os dois, numa terra de ninguém que o filme procura, encontra, e alimenta até ao fim (até, de facto, não sobrar ninguém na terra).
Essa terra é, claro, uma "cosa mentale", narrativamente falando o
produto do delírio febril de um protagonista que um feroz ataque de
sarampo (entre outras vicissitudes) deixou em estado semi-comatoso. Mas é
também uma "cosa cinematografica": um filme projectado na cabeça dum
espectador adormecido. É curioso, mas o filme português que "A Cara que
Mereces" mais faz lembrar é a "Branca de Neve" de João César Monteiro:
um filme que suspende todos os vínculos "automáticos" ao real, que
conduz o espectador (com suavidade, aliás) para um modelo de realidade e
para um registo de representação (para um "mundo") com regras criadas
(e definidas com precisão) pelo próprio filme. O espectador, como diria
Straub, é "livre" de aceitar ou não, mas uma vez lá dentro não tem
retorno: o "mundo" desbobina-se em fluidez e fidelidade às suas
premissas, e nunca volta para trás. Se isto é um filme sobre um homem
que vê "filmes", é relativamente natural que aja segundo uma mecânica de
"protótipo" da relação entre um espectador (qualquer um) e um filme
(qualquer um).
Dissemos que o filme conduz o espectador com suavidade. Expliquemos, porque essa sequência, a da "transição", é o momento decisivo do filme. E é, seguramente, o momento decisivo na definição da relação que o espectador vai manter com ele: aí se decide se vai com ele ou se bate os pés e dá meia volta. O filme começa, em ambiente carnavalesco justificado pela narrativa (uma festa numa escola), com miúdos e graúdos disfarçados das mais diversas coisas. A atmosfera ainda é, no entanto, "real". Começa-se a desenvolver uma tragicomédia da regressão, com uma personagem (a de José Airosa) enfastiada, mal disposto com a perspectiva de fazer 30 anos, com problemas de relacionamento com os outros, de amuo fácil e capaz de ter sentimentos mesmo com as crianças que andam por ali à volta. Como uma fantasia musical à la Demy, de vez em quando entra música e as personagens cantam, em diálogo ou em monólogo. Há "gags", é fácil rir.
Depois a coisa sobrecarrega-se, o protagonista fica cada vez mais
doente, mais zangado. Refugia-se numa casa de campo, longe da cidade, e
adormece, cheio de febre. É a partir desse momento que o espectador fica
com a cara que merece, o que vem a seguir equivale ao "trigésimo
aniversário" de quem está a ver o filme (isto é uma piada). A música
começa a soar como se se preparasse uma sessão de hipnotismo, como um
gongo em cadência certa. Alguma coisa se passa, entre um adormecimento e
um despertar - o protagonista transformou-se em Bela Adormecida, e sete
personagens (como na Branca de Neve, justamente), sete criaturas tão
palpáveis como as criaturas oníricas, tomam conta do espaço. Doravante o
filme será deles, sempre em nome do adormecido. Têm características
distintivas, como personagens de conto infantil, e estão submetidos a
regras, incessantemente enunciadas - é o bastante para fazer um "mundo".
A sequência da transição leva tempo, permite que o espectador
"transite" sem brusquidão (mais cruel, Hitchcock matou a protagonista de
"Psico" duma penada, durante um duche). Por outro lado, um despertar
pode ser demorado, e ainda mais se se trata da habituação a um mundo
redesenhado por uma nova luz: chamem-lhe exagero ou disparate, mas esta
sequência tem o ritmo e a duração da longa cena de pugilato entre os
protagonistas do "They Live" de John Carpenter, onde se tratava de
convencer alguém a pôr uns óculos e a olhar para as coisas de uma
maneira diferente.
Apesar das premissas "fabulosas", e apesar da associação das personagens
a um comportamento infantil, nada faz rir: é uma história de adultos,
com traições, lealdades, desencantos, viagem duma harmonia comunitária e
familiar à solidão magoada da maturidade. "Adeus, amigos", já não nos
divertimos aqui. Não há nada de regressivo nisto, nem nas conclusões.
Mas em toda esta segunda parte - é o que tem de mais notável - pontifica
um permanente desejo, como um desejo de cinema e de histórias.
"Histórias...", desabafa uma personagem, antes de um dos mais bonitos
planos do filme (um lago e barquinhos de papel coloridos). Estamos na
terra do cinema, onde a coisa mais sensual do filme pode ser a maneira
como dois planos se colam um ao outro, onde uma palavra pode ter o poder
de lançar uma história e - contra todas as expectativas - encontrar as
imagens correspondentes (a uma história de piratas, por exemplo). Entre a
metáfora e a literalidade, "A Cara que Mereces" (é o seu único lado
jubilatório) deixa-nos com a única palpabilidade possível: a do cinema,
simultaneamente ilusão e palpabilidade. E um pouco de aventura, com os
diabos.
Texto retirado do site Ípsilon
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