Excelente.
Crítica:
O Homem Duplicado é o tipo de
filme que, temo, enviará a maior parte da plateia para fora das salas de
cinema com uma impressão negativa. “Confuso”, “sem sentido”,
“pretensioso” e “chato” possivelmente serão alguns dos termos usados
pelos detratores – algo que sempre ocorre quando um longa tenta criar
uma narrativa um pouquinho (não precisa ser muito) fora do convencional.
Em vez de tentarem entender os motivos por trás das decisões do
cineasta, estes espectadores preferem atacar a obra por receio, talvez,
de serem considerados “estúpidos” por não terem compreendido exatamente o
que esta queria dizer – e o recente
Sob a Pele
é outro trabalho que provoca o mesmo tipo de reação. O que este
segmento do público parece não entender é que você não precisa conseguir
decifrar os simbolismos da narrativa ou a natureza exata por trás de
suas aranhas gigantes para apreciar e reconhecer o fato de que este
trabalho de Denis Villeneuve é capaz de criar uma atmosfera carregada,
tensa e sombria – mesmo que a plateia não consiga apontar precisamente
por que está experimentando esta tensão. Apreciar um filme apenas como
experiência narrativa ou pela força de suas atuações não é proibido – e
explorar seus temas após a sessão é um esforço intelectual que pode ser
imensamente divertido em vez de frustrante.
Não é à toa que a projeção abre com a epígrafe “Caos é a ordem ainda indecifrada”:
inspirado no livro de Saramago, o roteiro de Javier Gullón nos
apresenta ao professor universitário Adam (Gyllenhaal), que, vivendo num
apartamento vazio em uma metrópole superpoluída, vive um cotidiano de
repetições e esterilidade emocional. Certo dia, porém, ele percebe que o
figurante visto de relance em um filme é sua cópia perfeita e decide
procurar o sujeito: um aspirante a ator chamado Anthony, mas que usa o
pseudônimo Daniel Saint Claire (Gylenhaal novamente, claro). Casado com
uma jovem triste que se encontra no sexto mês de gravidez (Gadon),
Anthony é o oposto de Adam, mostrando-se explosivo, seguro e ameaçador
quando o outro consegue apenas se esconder do mundo e mal parece notar a
própria namorada, a bela Mary (Laurent).
Construindo um tom inquietante desde o
primeiro plano, que traz Adam em seu carro enquanto ouve um recado da
mãe (Rossellini) sobre seu novo – e vazio – apartamento, o rapaz parece
habitar um mundo poeirento e claustrofóbico, já que a cidade usada como
pano de fundo para a trama surge como um ambiente hostil graças aos seus
imensos prédios cinzas contrapostos a um céu permanentemente nublado.
Ocupando um apartamento pequeno e pouco mobiliado e dando aulas para
turmas semivazias (aplausos ao design de produção de Patrice
Vermette), o protagonista parece alheio ao mundo que o cerca – e não é à
toa que, para fazer uma pesquisa na Internet, ele surge puxando um cabo
de rede para conectar seu notebook à web.
Vivido por Jake Gyllenhaal como um homem
com expressão triste e uma postura encolhida, com a cabeça projetada à
frente em uma pose que parece sugerir ao mesmo tempo a vontade de se
esconder e o impulso de se defender, Adam se torna exponencialmente mais
ansioso à medida que percebe a existência de Anthony – e é notável como
Gyllenhaal evoca seu nervosismo ao respirar pesadamente enquanto liga
para o apartamento do outro pela primeira vez. Por outro lado, Anthony
surge arrogante, dominador e agressivo desde sua primeira aparição – e o
contraponto entre os dois é tamanho que, confesso, ao ler os créditos
finais senti que faltava um nome até me dar conta de que era o do
próprio Gyllenhaal, que deveria ter sido listado duplamente. Por outro
lado, Mélanie Laurent e Sarah Gadon criam composições que não se
contrapõem como às de Gyllenhaal, mas se complementam, já que vivem duas
mulheres cuja tristeza é fruto direto da relação que mantêm com os dois
homens que dominam a narrativa e que são obviamente nocivos às
parceiras, embora de maneiras diferentes (mais sobre isto em um
instante).
Dirigido por Denis Villeneuve no mesmo ano em que comandou o excepcional
Os Suspeitos,
O Homem Duplicado
não poderia ser uma obra mais diferente, comprovando a versatilidade do
cineasta ao criar um mundo que sugere uma distorção constante da
realidade até mesmo através de planos gerais como aquele que, movendo-se
sobre um prédio em formato de “L”, cria uma ilusão de ótica momentânea
que leva o espectador a embaralhar a própria visão. Sugerindo uma cidade
futurista através de detalhes sutis como o céu poeirento e nublado e os
vários prédios em construção que se projetam sobre o protagonista, o
filme ainda usa a semelhança entre estes edifícios como retrato da falta
de personalidade do próprio Adam – e quando o vemos em um quarto de
hotel com teto baixíssimo, a impressão de claustrofobia criada ainda
serve para ressaltar sua natureza reprimida e sufocada.
Fotografada de maneira expressiva por Nicolas Bolduc, a paleta de O Homem Duplicado
surge carregada num tom amarelado que não só ressalta a atmosfera
árida, sufocante, da narrativa como ainda pode ser encarada como uma
referência direta ao trabalho feito por Aldo Tonti em Os Pecados de Todos Nós,
de John Huston – um filme que, não por coincidência, lidava com a
profunda repressão sexual de seu protagonista, num reflexo do tema
principal deste filme de Villeneuve. Aliás, já que menciono o tema desta
obra, não é à toa que, logo no início da projeção, Adam cita a
complementação que Marx fez (em “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”) ao
pensamento de Hegel sobre a História repetir-se, quando emendou dizendo
que “a primeira vez, (repete-se) como tragédia; a segunda, como farsa”
– já que é justamente a insistência do protagonista em repetir seus
erros que o enviará a uma jornada psicológica complexa que incluirá a
imagem recorrente das aranhas que percorrem a projeção.
Pois o que temos aqui (e sugiro que só
leiam o restante deste texto depois de assistirem ao filme) não é, de
fato, uma trama envolvendo clones ou algo do gênero, já que basta uma
observação atenta para perceber que Adam e Anthony são, de fato, a mesma
pessoa, merecendo destaque a única cena de Isabella Rossellini, que não
deixa este ponto em aberto, já que ela oferece amoras ao filho (o único
que tem, como faz questão de frisar), menciona seus esforços para se
tornar ator e suas dificuldades para manter-se com a mesma mulher –
todos estes sendo elementos que dizem respeito a Anthony, não ao Adam
com o qual ela conversa naquele momento. Aliás, os esforços do
personagem para fugir de si mesmo também encontram eco no pseudônimo de
Anthony, que, como ator, usa o nome “Daniel”. Da mesma maneira, a foto
rasgada que Adam mantém no apartamento surge completa na casa de seu
“sósia” e os seis meses que marcam a gravidez da esposa são os mesmos
que o distanciam de seus esforços como ator.
Mas por que há esta ruptura de egos? Por
que subitamente Adam enxerga um duplo? Pois trata-se de uma ruptura
psicológica clara – e quando sua esposa encontra a versão “alternativa”,
choca-se ao perceber que há algo de estranho ocorrendo com o marido,
reconhecendo imediatamente tratar-se do homem com quem se casou e não de
um estranho com rosto idêntico. E o que significam, afinal, as tais
aranhas?
Explicar Arte é um exercício fútil, claro. Sim, é divertido – e já me entreguei a este prazer ao escrever sobre filmes como
Magnólia,
Cidade dos Sonhos,
O Grande Truque,
Sob a Pele,
Cisne Negro,
entre outros. No entanto, jamais me ocorreria dizer que minha
interpretação acerca destas obras foi a “definitiva”, como um “gabarito”
para suas perguntas e mistérios. Por outro lado, o exercício
intelectual, psicológico e emocional contido na busca por uma
interpretação satisfatória é parte integral do processo de absorver uma
obra e, claro, faz parte da diversão também em
O Homem Duplicado. Que, sim, oferece algumas pistas claras acerca de sua significação.
Tomemos, como exemplo, o instante no qual Adam vai a uma locadora e o cartaz de A Mulher de 15 Metros surge
claramente ao fundo, trazendo uma figura feminina como uma espécie de
Godzilla prestes a destruir uma cidade. Analisada isoladamente, aquela
referência poderia ser apenas um detalhe cenográfico, mas quando a
justapomos ao plano no qual uma aranha gigantesca caminha pela cidade,
um padrão se forma: estaria Villeneuve comparando aranhas e mulheres?
Mais: ele estaria se referindo à forma feminina, ao gênero como um todo
ou a algo que poderiam representar para o protagonista?
A resposta novamente pode ser encontrada em dois planos significativos de O Homem Duplicado: aquele, logo no início, no qual uma bela mulher em um clube de voyeurs/strip-tease parece
prestes a esmagar uma aranha e outro no qual o protagonista passa por
uma mulher nua, de corpo escultural, cuja cabeça foi substituída pela de
um aracnídeo. E então nos lembramos de que Anthony obviamente desperta a
desconfiança de sua esposa, que o acusa de voltar a traí-la, e
percebemos como, ao seguir Mary, o sujeito exibe uma expressão
atormentada ao se surpreender devorando-a com os olhos.
E o retrato que surge é o de um homem
com fortes impulsos sexuais que já viu seu casamento ser ameaçado por
sua incapacidade de se controlar diante do corpo feminino. Um homem que
agora vive em um mundo repleto de referências a aranhas, como as linhas
dos bondes, os padrões do embaçamento no box do chuveiro e o vidro
partido de um carro, todos remetendo a teias. Um homem que agora vive
reprimido e só, mas que descobre um alterego impulsivo que não
mostra pudor algum ao desejar uma bela mulher, chegando a se passar por
outro para possui-la. Um homem que finalmente chora, exausto, no
instante em que aquele alterego se destrói num acidente de
carro ao lado da figura que representa a tentação, finalmente permitindo
que abrace a esposa grávida e aceite seu conforto.
Um homem que, mesmo assim, volta a ceder
ao desejo na primeira oportunidade que surge, ao descobrir uma chave
que reabrirá as portas para outras mulheres, e que por esta razão é
surpreendido pela criatura gigantesca e assustadora que passou a
simbolizar sua necessidade de reprimir-se. Uma criatura que ele encara
não com o pavor que toma conta do espectador, mas com uma calma e uma
resignação reveladoras.
Pois ele sabe que está enxergando não
uma aranha gigantesca e predadora, mas o símbolo agora acuado de sua
necessidade de manter-se fiel.
Fonte: Cinema em Cena