Crítica:
Um grande diretor pode ser identificado pelo talento que ele
demonstra ao narrar uma boa história envolvendo, para isto, o espectador
com cada elemento que o cinema tem a oferecer em seu caldeirão de
recursos. A filmografia que
Fatih Akin
vêm construíndo nos últimos 15 anos comprova que ele já pode ser
enquadrado nesta categoria. Ainda que menos “conceitual” que seus filmes
anteriores,
Soul Kitchen
segue demonstrando a vocação de Akin para contar histórias. Que
aparentemente são simples, mas essencialmente belas, e que exploram os
encontros e desencontros tão típicos da vida. Mais uma vez este diretor
alemão de origem turca consegue, com maestria, conduzir o espectador
pela mão com linhas de roteiro perfeitas, uma ótima condução de atores,
cenas de beleza sutil e que demonstram fluidez, e uma trilha sonora
intocável. Outra de suas obras contagiantes, não há dúvidas.
A HISTÓRIA: Zinos Kazantsakis (
Adam Bousdoukos)
dá o sangue em seu restaurante em um bairro operário de Hamburgo.
Proprietário, gerente e “cozinheiro” do local, Zinos serve comidas de
preparo rápido – a maioria delas, frituras. Para isso, ele tem uma
clientela fixa e pequena. Depois de mais um dia de trabalho, ele vai até
um restaurante chique da cidade para o jantar de despedida da namorada,
Nadine Krüger (
Pheline Roggan). No caminho, ele encontra um antigo colega do tempo do colégio, Thomas Neumann (
Wotan Wilke Möhring). No restaurante, ele vê uma cena inusitada envolvendo o chef Shayn Weiss (
Birol Ünel). No dia seguinte, Zinos recebe a visita de seu irmão, o presidiário Illias (
Moritz Bleibtreu).
Estes e outros encontros e desencontros na vida de Zinos ocorrem de
maneira muito acelerada, mudando a sua rotina de maneira decisiva.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes
que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por
isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Soul Kitchen):
Este filme de Fatih Akin quase pode ser considerado um exemplar perfeito
de uma “comédia de erros”. Acelerada, com novos personagens aparecendo
rapidamente sob os olhares atentos do espectador, a narrativa de Soul
Kitchen vai agravando, colheirada por colheirada, a história de seu
protagonista. Parece que a maré de “azar” de Zinos Kazantsakis não tem
fim. E que o seu destino é realmente a sarjeta… mas, como nos filmes
anteriores de Fatih Akin, é preciso estar atento aos detalhes. Porque
por mais que as coisas parecem ir piorando na realidade de Zinos pouco a
pouco, paralelo a isso surgem oportunidades e encontros promissores.
Fatih Akin tem um certo gosto por narrativas paralelas, encontros e
desencontros e, principalmente, o peso que ele dá para as pequenas
escolhas que a pessoa faz na vida. Como no perfeito
Auf der Anderen Seite (comentado
aqui
no blog), em Soul Kitchen, novamente, os personagens principais são ao
mesmo tempo “donos” e “vítimas” de seus destinos. O que o diretor e
roteirista parece querer nos dizer sempre é que, por mais que a vida
tenha a sua dinâmica e sua lógica próprias, nós também somos capazes de
dirigí-la. Afinal, no “palco” das nossas vidas, somos atores
fundamentais do nosso drama e da nossa comédia.
Em Soul Kitchen, cada pequena escolha, cada gesto do protagonista
leva a um novo evento. Que pode ser problemático ou uma solução. Algumas
vezes na história – como na vida real -, Zinos apenas reage ao que os
acontecimentos lhe apresentam. Na interação com as outras pessoas, isso
Fatih Akin gosta de ressaltar, é que se faz a existência. E mais uma
vez, o roteiro do diretor, escrito ao lado do ator principal desta
produção, Adam Bousdoukos, revela uma gama curiosa de personagens
interessantes, ricos em suas vivências e histórias e que, ao se
encontrarem e desencontrarem ao longo do tempo, provocam no público
compaixão, risadas legítimas e alguns momentos de surpresa.
Um dos aspectos que eu achei mais curiosos deste filme é a forma com
que Fatih Akin ressalta os “acidentes de percurso” e/ou os encontros
inusitados que seus personagens vão tendo pelo caminho. Metade das
relações do protagonista são, digamos assim, “previsíveis” – cito, nesta
situação, seus encontros com o irmão, a garçonete Lucia Faust (
Anna Bederke), o construtor de barcos Sokrates (
Demir Gökgöl), o barman Lutz (
Lukas Gregorowicz)
e a namorada de Zinos. Mas outras relações, que acabam sendo decisivas
para a história, acabam se desenvolvendo “por acaso”, como ocorre com o
ambicioso e trapaceiro Thomas Neumann, o chef de cozinha Shayn e a
massagista Anna Mondstein (
Dorka Gryllus). São estas “novas aquisições” na vida de Zinos que acabam modificando a sua realidade de forma fundamental.
Assim, no nosso dia a dia, também nos encontramos com pessoas que
podem alterar definitivamente a nossa realidade. Mas para que isso
aconteça – e o diretor deixa claro em dois momentos “apaixonados” do
filme -, é preciso que as pessoas estejam abertas a tudo de
revolucionário que novos encontros podem nos trazer. Nem que estas
“novidades” surjam apenas para reavaliarmos o que tínhamos e para onde
queremos ir. O que Soul Kitchen e outros filmes de Fatih Akin ressaltam é
que não há interação, um encontro verdadeiro entre duas pessoas que não
resulte em uma realidade modificada.
Outra característica marcante deste diretor alemão é o de não evitar a
dor, a perda e as “desgraças” da vida. Para ele, tão importante quanto a
alegria e o amor, é o aprendizado, as oportunidades e os efeitos que as
tragédias, as perdas e os danos têm nas histórias das pessoas. (SPOILER
– não leia se você não assistiu ao filme). Em Soul Kitchen, algumas
vezes, parece que Fatih Akin sente um certo prazer mórbido em fazer os
seus personagens passarem por maus bocados. Mas o curioso deste filme,
mais do que em Auf der Anderen Seite, é que o diretor e roteirista
revela, acima de tudo, uma mensagem de esperança, de alegria. Afinal,
Soul Kitchen é, acima de tudo, uma história de amor. Feita de percalços,
dores, desafios, mas uma história em que o amor, a generosidade e as
convicções do protagonista não se perdem nunca. Um filme essencialmente
esperançoso.