Abschied von gestern (a.k.a. Anita G.), 1966
Legendado, Alexander Kluge
Formato: AVI
Áudio: alemão
Legendas: português
Duração: 88 min.
Tamanho: 700 MB
Servidor: Mega (4 partes)
LINKS
SINOPSE
Uma jovem, Anita G., rouba um pulôver para se aquecer. Cumprida a pena, ela faz várias tentativas de começar vida nova. Depois de uma fuga em ziguezague, vai parar de novo na cadeia. Os nazistas tinham levado seus pais. Ela vem do Leste. E agora passa frio no Oeste. Três Alemanhas. Prêmio Especial do Júri do Festival de Veneza.
Impressões sobre Despedida de ontem, de Alexander Kluge
Se o cinema alemão não tem a doçura dos tchecos, o entretenimento dos franceses e a densidade existencial dos suecos, ele apresenta, por outro lado, uma capacidade impressionante de condensamento filosófico, onde nada é gratuito. É o caso de Abschied von gestern – Anita G. (1966), de Alexander Kluge, em que o esmagamento do indivíduo pela sociedade administrada parece ser uma das principais camadas.
A protagonista Anita G. encontra-se deslocada em todos os sentidos: étnica e religiosamente, porque é judia; amorosamente, porque é amante; culturalmente, porque não tem bacharelado; e legalmente, porque é ladra. Uma das chaves do filme é o roubo de um casaco que, da parte da personagem, não chega a se constituir como uma subversão da ordem estabelecida, mas sim como uma espécie de aversão – este movimento interno de despertencimento fica evidente pelo fato de ela não esconder o objeto furtado. Da mesma forma que desconhece a noção de propriedade privada, Anita ignora a lógica de circulação do capital – a troca de trabalho (moderna abstração do tempo) por dinheiro.
Alexander Kluge
Despedida de ontem é uma discussão centrada na ótica de Adorno e Horkheimer sobre as últimas conseqüências da filosofia kantiana à sociedade. Há um eixo de tensão entre conhecimento e liberdade que funciona com base no conceito de ‘esclarecimento’ de Kant. Para este, em linhas gerais, o ‘esclarecimento’ é o processo pelo qual o homem sai das trevas do medo e da ignorância para tornar-se senhor do mundo, de maneira crítica, substituindo a imaginação pelo saber.
“A técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de outros, o capital” (Adorno e Horkheimer, 1947, p.20). Este modelo determinará todo o desdobramento da sociedade, principalmente no que ficou conhecido por positivismo, em que o conceito kantiano de disciplina, caminho pelo qual se chega à liberdade, vira metodologia. Mas esse pensamento engendra em si um problema que, por ter passado despercebido por Kant, transforma suas idéias em um romantismo científico: ele não avaliou que o ‘esclarecimento’ seria progressivamente autodestrutivo. A técnica inviabiliza a liberdade e o pensamento acaba baseado na repetição, natureza fundamental do mito, justamente o elemento que se procurava dissolver com a ciência. Sobre essa problemática, uma cena irônica e extremamente metafórica é aquela em que Anita acompanha Manfred Pichota, assessor do Ministério da Cultura, a uma área de treinamento de cães:
(adestrador) O que mostraremos hoje é uma mostra representativa do trabalho que fazemos com os cães para que aprendam a se controlar no tráfico.(Anita) Detesto cães de caça.(adestrador) Você está pensando nos rottweilers. Aqui você encontra dez diferentes raças. Sete delas são raças utilitárias, mas seria conveniente se todos os cães fossem trazidos para cá, para que as pessoas pudessem ser educadas em relação a como treiná-los. Daí os cães teriam mais liberdade. Não ter nenhuma liberdade é ruim para o cão. Como dono de um cão eu tive que aprender como dar a ele o máximo de liberdade. Ele me agradecerá.
A sociedade está tão imersa na idéia de utilidade que uma senhora chega a se perguntar, ainda no começo do filme: “Para que você quer sua liberdade? Não serve para nada” ou durante a tentativa de Anita de vender fitas de idiomas, em que o aprendizado de línguas é sustentado por um discurso comercial que diferencia o caráter do aprendizado de acordo com o cliente. Outra conseqüência da perspectiva kantiana de ‘esclarecimento’ fica evidente nas cenas em que Anita tenta se adaptar ao ambiente universitário, em que se mostra a esterilização do conhecimento:
(Anita) Um conselho, eu preciso de um conselho! Devo aceitar, engolir?
(professor) Engolir é a forma mais intensa de se apropriar de algo.
Fugir da autodestruição massificada através de uma autodestruição pura é o que parece mover Anita, através de uma série desenfreada de ações que renegam todo o substrato sedimentado pela civilização. “Ela tenta melhorar”, diz a legenda – procura emprego, vai à universidade – mas, afinal, como é possível viver em consonância com um mundo que perdeu completamente o sentido, que justifica a barbárie e que engloba e anula a força individual?
Kluge alegorizou essas questões de maneira deliberada, tornando-se uma tarefa árdua definir a contingência de cada cena. Alguns exemplos são a ‘selvageria’ das cenas em que Anita aparece comendo – após o processo judicial e quebrando cascas de amendoim com os dedos no restaurante, por exemplo – ou aquelas em que o corpo, em closes muito plásticos, é emerso do prosaísmo da mera existência – aquele de Anita no banho, após se entregar à polícia, por exemplo.
A desumanização e a credulidade causadas pela cientificização do saber são cristalizadas no absurdo histórico do Holocausto, trauma que Kluge desenvolve em articulação com as questões colocadas anteriormente. Afinal, Anita é judia – ainda no começo, durante as cenas kafkianas do processo judicial, o juiz pergunta a ela se o furto tem relação com os acontecimentos de 1943-1944, ao que ele complementa que os fatos passados certamente não influenciam os jovens. Contudo, há uma atmosfera brutal de dívida, de pendência: as lápides não foram recolocadas, os salões de festas das fotografias continuam vazios. Afinal, como se termina?
Como é impossível não pertencer à sociedade, a busca talvez inconsciente de Anita por reparação se torna fatalmente autodestruição. O que fica implícito é que estamos no mesmo barco; que a sociedade tecnicista que fragmenta é a mesma que massifica; que a concepção de mundo oriunda do século das luzes, se leva à realização da humanidade, também justifica a barbárie. Em outras palavras, o comércio de peles continua, porque todos as compram. Como, então, despedir-se de ontem?
(Anita, correndo) Não se ressentir pelos ovos podres jogados em você; mesmo diante de uma dona-de-casa desgrenhada ou de um velho surdo, respeitar a dignidade humana.
Parece que esta fala de Anita desestabiliza a idéia de ofensa para abrir uma perspectiva mais ampla, em que o valor humano é resgatado da lama. Ela é dita na única cena em que a personagem olha diretamente para a câmera, para o espectador, que está diante de uma mulher ladra, caloteira, ignorante, amante e mentirosa. A partir dessa etapa, inicia-se uma relativização de posições: um homem descreve sua vergonha por ter passado quarenta e cinco minutos escrevendo o que uma ré, seis ou sete anos mais velha do que ele, confessava em pé. “É certo os julgadores ficarem sentados e os culpados de pé?”; quando teremos uma mesa redonda, para fazermos aquilo que chamamos de justiça? Nesse sentido, também é interessante pensar no depoimento do hoteleiro, que fala que mesmo com o consentimento dos russos, nenhum dos 1500 ex-prisioneiros quis atirar em um soldado nazista. Esse movimento também está em jogo em uma cena anterior, em que um professor discorre sobre o que seria pior: fazer um mal ou sofrer uma injustiça? Dependeria, sob uma das visões, se o critério é moral (social) ou egoísta (pessoal).
O cinema surge como espaço privilegiado para lidar com essa angústia dialética. Diferentemente do que ocorre com o romance, que busca uma fuga para a mediação de toda experiência pela sociedade massificada através do que Adorno chamou de ‘epopéia negativa’, o cinema, como indústria cultural, já leva em seu próprio termo a natureza controversa da arte e da vida contemporânea.
Análise retirada do site cinefabico
Obrigado.
ResponderExcluirobrigado
ResponderExcluir